Mestres, Arquitetos e Maçons
Um dos aspectos de relevância da maçonaria tem sido sempre a compreensão da figura do mestre. Já sabemos que os construtores das catedrais entre os séculos XII e XIV, quase em sua totalidade, pertenceram a alguma associação de maçons livres ou franco-maçons, sendo este termo então uma mera definição em sentido profissional. Sabemos que a maioria dos maçons construtores estava rigidamente hierarquizada em três graus profissionais: aprendizes, companheiros e mestres. Embora em alguns casos poderíamos falar somente e de forma mais concreta de dois graus, de aprendizes e companheiros.
Dependendo da região, o mestre podia desempenhar uma função de direção da obra, ou de presidente de uma loja, no caso da maçonaria operativa. Em outros lugares os mestres eram possuidores de um grau profissional superior, o que hoje consideraríamos como um verdadeiro arquiteto, ainda que na realidade não tiveram este apreço tal como podemos entende-lo na atualidade. Certamente a Idade Média trouxe consigo uma nova distribuição do poder terrenal e religioso; uma nova concepção e um novo desenvolvimento da economia. Mas aqueles grandes senhores surgidos das novas concepções sociais, políticas e econômicas não puderam nunca construir um templo, nem sequer em sua maioria poderiam te-lo imaginado.
Cortar as pedras e modificar o horizonte das cidades devia ser uma atividade de destreza laboral. De tudo isto poderíamos dizer em definitivo que os mestres não foram senão uma classe de obreiros claramente diferenciados, remunerados e com uma condição de preparo intelectual que lhes permitiu, além de serem iniciados nos conhecimentos da arquitetura, conhecer principalmente outras artes e técnicas, como a fabricação de maquinaria, escultura, desenho, construção de pontes e estradas.
Cortar as pedras e modificar o horizonte das cidades devia ser uma atividade de destreza laboral. De tudo isto poderíamos dizer em definitivo que os mestres não foram senão uma classe de obreiros claramente diferenciados, remunerados e com uma condição de preparo intelectual que lhes permitiu, além de serem iniciados nos conhecimentos da arquitetura, conhecer principalmente outras artes e técnicas, como a fabricação de maquinaria, escultura, desenho, construção de pontes e estradas.
Entretanto, os mestres, em alguns casos, e dependendo das profissões, exerciam sobre seus alunos uma vigilância não só profissional, como também moral. Um contrato de 1382 entre um aprendiz e um ourives londrino especificava, por exemplo, que o aprendiz não devia entregar-se a fornicação, nem sob o teto do seu mestre, nem em outro lugar. Tampouco podia comprometer-se em casar-se sem o consentimento do seu mestre, estando inclusive proibido de frequentar as tabernas, a não ser que fosse em decorrência dos negócios do seu mestre. Em troca de tal comportamento, o mestre não podia separar-se do seu aprendiz, a não ser por causa de força maior: enfermidade grave, peregrinação ou abandono definitivo do ofício.
Catedral de Reims |
É provável, efetivamente, que tenha havido um certo exagero quanto ao segredo com que as lojas conviviam. Entretanto, devemos admitir que teve de existir um compromisso expresso dos mestres de obras em não revelar os segredos de sua arte, devido precisamente ao seu caráter itinerante, dentro da profissão, outorgada às lojas maçônicas uma identidade distinta, bem como uma liberdade maior. Essa forma de proteção, com respeito aos demais ofícios, não implicava o segredo total com referência a outras lojas e grêmios de construtores em outras cidades e paises.
Mas existem, todavia, outras opiniões a esse respeito bastante interessantes. Paul Johnson nos adverte de que todos os artesãos medievais tinham segredos relativos aos seus ofícios. Não obstante, foram precisamente os maçons mais decididamente obsessivos a associar de forma espiritual as origens de sua corporação com o mistério dos números. Geralmente os mestres tinham desenvolvida uma idéia, parecendo pseudocientifica, em torno dos números, de tal forma que memorizavam séries de dígitos para em seguida tomar decisões e traçar os projetos de construção. A oficina, ou a loja eram fundamentais para o objetivo de transmitir conhecimentos de forma oral, assim como o aprendizado se realizava praticamente de memória, evitando que fosse preciso colocar no papel qualquer tipo de conhecimento técnico. Boa prova disto foi o fato de haverem existido os verdadeiros manuais de construção até bem dentro do século XVI.
Basílica de Vézelay, arte gótica |
Alguns especialistas opinam que os esboços preparatórios e os cálculos matemáticos datam de um século antes. Christian Freigang comprovou que existiram desenhos de arquitetura transportáveis em escala reduzida, com o objetivo de servirem para discutir projetos. Muitos são, efetivamente, os exemplos que se conservaram nesse sentido.
Para as fachadas da catedral de Reims, ao redor do ano de 1260, e na construção da catedral de Estrasburgo, naquele mesmo ano, existem pergaminhos e grandes desenhos das obras. A partir do século XIII se pode comprovar como se multiplicavam os traçados arquitetônicos desenhados em alguns casos sobre vários pergaminhos unidos de grande tamanho, tal como sucede com a catedral de Colônia, desenhada até o ano de 1300. Este aspecto tem uma grande importância devido a que os mestres arquitetos a continuaram 400 anos depois, graças precisamente à existência destes desenhos. Por último, são conhecidos os detalhes sobre um pergaminho de mais de quatro metros que foi desenvolvido entre os anos de 1265 e 1285, também como conseqüência da construção na cidade de Estrasburgo de sua catedral.
Catedral de Estrasburgo, vitral |
Acerca das conjecturas sobre os meios matemáticos com os quais ajudaram a levantar as catedrais, muitos arquitetos maçons optaram pela utilização de complexas construções geométricas que, em muitos casos, eram combinações de círculos, triângulos, quadrados, etc., incluindo figuras octogonais. Em qualquer caso, também cabe a possibilidade de que utilizaram unidades absolutas para a época, isto é, pés, côvados e braças, entre outras. De todas as formas é sabido o apreço dos arquitetos medievais pela ciência dos números, resultante com toda probabilidade da liturgia pitagórica de que haviam tomado seus conhecimentos no Egito. Assim, os “cônegos de Pitágoras”, nome com que o abade Ledit reconheceu os mestres de obra da Idade Média, e tal como foi comentado por Christian Jacq y François Brunier, não esqueceram nunca as regras de ouro dos construtores egípcios, sem as quais provavelmente não teria sido possível a harmonia arquitetônica.
Construindo a Catedral |
É de se supor, com os dados que conhecemos, que essas lojas, embora estivessem claramente dependentes do capítulo catedralicio, contavam com uma personalidade jurídica própria. De fato, se observarmos as funções efetivas de qualquer das lojas que operavam nas cidades européias, veremos que tinham a seu cargo questões tão essenciais como a administração, as finanças e a contratação de mestres-de-obras, bem como de arquitetos e projetistas. Do mesmo modo deviam prestar contas perante as autoridades que formavam o mencionado capítulo catedralicio de maneira periódica. Em alguns casos, como sucedeu com a loja encarregada da construção da catedral de Estrasburgo, estas eram proprietárias de suas próprias pedreiras, assim como de seus trabalhadores, aspecto do qual se deduz que igualmente eram responsáveis pela contratação de todo o pessoal, como também dos seus salários.
Gárgula, Catedral de Notre Dame |
A atuação e o desenvolvimento das estruturas nas lojas medievais primitivas estiveram deste modo associadas não somente à construção de grandes edifícios religiosos, geralmente catedrais, como também às escolas que foram se desenvolvendo ao redor daquelas. Séculos mais tarde seria no seio dessas escolas onde haveria de ver a luz uma parte do que mais tarde constituiriam as linhas do pensamento científico e a construção filosófica das revoluções na Europa e na América dos séculos XVIII e XIX.
As demandas dos construtores maçons, que já haviam sido dirigidas durante anos a manter uma vontade própria frente aos poderes institucionais, se haviam trocado durante o último período medieval por um encontro com uma maior consciência de si mesmos e da própria realidade que os rodeava. Talvez por essa razão as catedrais deviam continuar sendo construídas em pedra, com a esperança de que permanecessem de pé de maneira perpétua, e como resposta às antigas religiões pagãs que se haviam materializado paulatinamente em complexos arquitetônicos. Estes edificios, em definitivo, se fizeram possuidores de uma simbologia que só podia ser decifrada pelos iniciados e herméticos construtores. Devemos ter em conta que o símbolo mais importante dos arquitetos medievais foi a proporção, chave da harmonia do templo. Como descreveram Jacq y Brunier, os construtores não eram obrigados a contar nem a calcular, simplesmente criavam o edifício como se fosse um ser inanimado “capaz de revelar-nos as leis da nossa própria evolução”.
Catedral de Beauvais |
O cristianismo medieval que tentava se impor sobre os reinos europeus concebia a Igreja sob duas formas e conceitos complementares. Era, por um lado, a comunidade local; por outro, uma sociedade universal. A catedral construída pelo mestre e seus discípulos era, por sua vez o farol de uma cidade nova, vital. Mas simultaneamente essa mesma catedral servia de emblema para os peregrinos. Para uma grande cidade era preciso uma grande construção, um templo celestial. As cidades, ainda que sendo modestas, necessitavam de grandes igrejas nas quais pudessem realizar e completar a vida espiritual. De fato, estas concepções simbólicas não haviam tido mais que um valor secundário se a catedral medieval não houvera sido, antes de tudo, um centro vital urbano em que devia se estabelecer uma comunidade de homens e mulheres.
Os cidadãos medievais não a admiravam como um monumento agradável nem a exaltavam por suas delicadas e esbeltas formas arquitetônicas, mas como um símbolo referencial, essencial para a vida social. Alguns conseguiram converter seu campanário em ajuntador de demônios ou ainda chamada aos anjos; os pináculos dissipavam as tempestades e, em suma, toda a edificação acabou sendo pensada como uma imagem a que em seguida se lhe atribuíam virtudes e poderes mágicos; um abrigo para as forças hostis.
Campanário de Giotto |
Em que pese o que possamos pensar, o embelezamento e a conservação das igrejas e dos templos cristãos não ficavam a cargo de algum administrador; nem sequer de algum mestre construtor. Uma catedral dependia, por exemplo, da responsabilidade coletiva de toda a população. Permanecia aberta a qualquer hora do dia e da noite. Se representavam repertórios de obras sacras e se acudia a obter informação relativa à cidade e ao reino. Tanto os camponeses, artesãos, cavaleiros ou burgueses mantinham numerosas conversações e reuniões, antes e depois das liturgias. As grandes multidões da antiguidade foram assim convertidas em comunidades medievais de pessoas cuja aliança vinha determinada pela veneração a um mundo sacralizado.
Na catedral, portanto, ficavam reunidas também todas as expressões artísticas. O pensamento do mestre-de-obras na arquitetura, a mão do artesão sobre a escultura e os mistérios do teatro ritual junto aos cânticos e a música. Também os alquimistas tinham por costume reunir-se com certa pontualidade ante o frontispício norte dos templos, nos quais os criadores de imagens gravavam símbolos relacionados com sua arte.
Não faltavam cenas do Antigo Testamento, imersos no simbolismo cristão e nos fundamentos secretos daqueles artistas. Esse conjunto de manifestações ficava completo de maneira habitual com algum tipo de celebrações qualificadas de “licenciosas”, mediante as quais algumas pessoas entravam na catedral desnudas, geralmente um homem e uma mulher acompanhados de um asno. Essas atitudes instauradas e admitidas pela Igreja na Idade Média provocavam nos crentes e cônegos uma liberação em suas energias críticas. Através da festa, tal como nos diriam Jacq e Brunier, em aparente onda carnavalesca podia representar-se um mundo pelo avesso, em cuja visão se poderia perceber o autêntico valor de um mundo ordenado.
Não faltavam cenas do Antigo Testamento, imersos no simbolismo cristão e nos fundamentos secretos daqueles artistas. Esse conjunto de manifestações ficava completo de maneira habitual com algum tipo de celebrações qualificadas de “licenciosas”, mediante as quais algumas pessoas entravam na catedral desnudas, geralmente um homem e uma mulher acompanhados de um asno. Essas atitudes instauradas e admitidas pela Igreja na Idade Média provocavam nos crentes e cônegos uma liberação em suas energias críticas. Através da festa, tal como nos diriam Jacq e Brunier, em aparente onda carnavalesca podia representar-se um mundo pelo avesso, em cuja visão se poderia perceber o autêntico valor de um mundo ordenado.
Mestres, construtores e clérigos admitiam que o ser humano não devia suportar o aborrecimento e muito menos a monotonia. Graças às contínuas alterações da liturgia, mediante o passar da seriedade da alma ao riso, era possível encontrar o equilíbrio. Estes desajustes nas celebrações litúrgicas ou “festas” foram rechaçados no século XIV, instaurando-se uma corrente rigorosa acompanhada de repressões e crimes, dando lugar a uma total condenação dessas práticas.
Com o paulatino enfraquecimento da Idade Média se foi dando lugar a uma nova época de novos conhecimentos e estilos. A ordem medieval alcançaria o ponto crítico do seu processo de decadência até os primeiros anos do século XV. O império germânico havia sido incapaz de impor sua hegemonia aos príncipes e às cidades, assim como às ligas de cavaleiros. O poder da Igreja começou um extremo processo de enfraquecimento devido em grande parte aos cismas e pelo constante aparecimento de movimentos heréticos. Este foi um aspecto de gravidade que se viveu entre a cristandade e que terminou com o Grande Cisma do Ocidente, dividindo a Igreja entre os anos de 1378 e 1417.
Papa Urbano VI |
Assim mesmo, entre os anos de 1347 e 1351, 25 milhões de pessoas, aproximadamente um quarto da população da Europa, morreram por causa de peste negra, uma espécie de mistura da pneumonia com a peste bubônica. Somente as zonas da Polônia, Flandres e o do sudoeste da França e Milão conseguiram se esquivar da enfermidade. Acossada a França pelos ingleses, Bizâncio e seu império começaram a se desmembrar em uma longa agonia ante a pressão dos turcos. Ademais, o conjunto da economia ocidental havia entrado em uma crise profunda, em cuja sombra os problemas sociais se agravaram com o passar dos anos. A tudo isto seguiu-se uma sucessiva carreira de insurreições camponesas e revoluções nos centros urbanos. Entre 1357 e 1358 as sublevações já invadiam a cidade de Paris, como conseqüência do excesso de impostos e a manutenção de obrigações do tipo feudal. Os diversos grêmios e sociedades nos reinos europeus entraram em constantes conflitos e as rebeliões se produziram sem solução de continuidade.
Em toda esta fratura do marco histórico, o pensamento, a investigação científica, o desenvolvimento da técnica, as artes e a literatura também começaram a esmorecer aparentemente dentro de um beco sem saída.: a escolástica que desde o século IX havia abraçado os métodos de especulação teológica e filosófica, imersa em debates abstratos e labirínticos, não tardou em cair em um completo ceticismo; o interesse pelas ciências naturais quase havia desaparecido das universidades e centros acadêmicos. Finalmente, a arte gótica internacional, cada vez mais distanciada de suas raízes místicas, há tempo que havia optado por uma clara tendência para o luxuoso monumentalismo.
Com tudo isto, a chamada maçonaria operativa, que até então havia estado vinculada à construção e aos ofícios relacionados com a arquitetura e o artesanato, não teve outra alternativa senão transitar através de uma crise esporádica que a levaria finalmente à aceitação de membros alheios ao estrito ideário maçônico. Uma crise que abriria caminho, com o tempo, ao que em nossos dias ficou conhecido como maçonaria especulativa.
Oriente do Recife, 31 de julho de 2007.